Publicado em 21 de novembro de 2024
Revista PEGN
Desistir não é um verbo que costuma fazer parte do vocabulário dos empreendedores. Histórias de sucesso falam muito de “resistir” e “perseverar” – e realçam o valor da resiliência. “Um dos mitos do empreendedorismo é achar que insistir e vestir a camisa até o fim vai trazer sucesso”, afirma Myrt Cruz, psicóloga, professora e diretora-adjunta da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
O fato é que levar adiante o que não está dando certo pode trazer grandes prejuízos financeiros e emocionais. Sinais como vendas em queda, endividamento, conflitos e estafa indicam que pode ter chegado a hora de abandonar uma ideia de um produto ou serviço, uma sociedade ou até mesmo um negócio todo.
Essa é uma decisão difícil e dolorosa, porque implica sacrificar algo que é importante, mas para alcançar outra coisa que pode ser melhor, pondera o psicanalista galês Adam Phillips, autor de On Giving Up (“Sobre Desistir”), livro lançado neste ano no Brasil pela editora Ubu.
Ele oferece uma perspectiva diferente para esse momento difícil: tem uma hora em que precisamos questionar o que teremos de perder para chegar aonde desejamos. Renunciar, nesse caso, é uma tentativa de criar um futuro diferente.
“Desistir me abriu oportunidades e me trouxe amadurecimento para enxergar os passos seguintes. Eu pude seguir com menos sofrimento, menos ansiedade, mas com a mesma paixão”, conta Fábio Rodrigues. Hoje ele é consultor e ajuda empreendedores a criar unicórnios, mas antes disso abriu mão de duas das três startups que fundou.
A experiência de Rodrigues mostra que é possível desistir de um projeto tão sonhado a favor da felicidade e da realização profissional. A seguir, ele e outros especialistas avaliam a hora de deixar um projeto ou um negócio para trás e como se planejar para fazer isso da melhor maneira.
Ninguém abraça uma ideia pensando em renunciar a ela. Ao contrário: quanto mais investimos, mais difícil é desistir. Esse raciocínio é tão comum que tem até nome: falácia do custo irrecuperável.
É quando continuamos a fazer algo que não dá resultado só porque achamos que já devotamos muito tempo, dinheiro e esforço. Só que insistir não significa que vai dar certo.
“Procrastinar só piora a situação. Além do que você já perdeu, pode perder mais”, afirma Adriana Montoro, consultora de negócios do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP).
Também é difícil desfazer o vínculo emocional. “Muitas vezes, a pessoa é a criadora de uma solução, e há um elo muito forte com o negócio. O emocional atrapalha um olhar analítico”, diz Rodrigues. “Fechar uma empresa, para muitos empreendedores, é como perder um filho”, concorda Montoro. “É algo visceral.”
À primeira vista, a desistência soa como um fracasso. Mas não é bem assim. “Às vezes, a gente precisa desistir para ser feliz. Não é uma derrota. É parar para avaliar cenários, se autoavaliar e perceber o que faz sentido para você”, afirma a psicóloga da PUC-SP. “E traz o alívio de não ter mais que carregar um fardo que, em muitos casos, não era necessário.”
Na mesma linha, o psicanalista Phillips propõe encarar a desistência como um presente, e afirma que existem algumas que podemos até mesmo admirar.
Pode ser também uma oportunidade de olhar um problema de maneira diferente e testar soluções. “Se você for resiliente demais, não muda. Continua fazendo a coisa errada, se endividando, comprometendo a sua saúde, as suas relações”, pontua Ana Cristina Limongi-França, professora de gestão e qualidade de vida na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e coordenadora da Fundação Instituto de Administração (FIA).
Ansiedade e pressão estão sempre rondando os empreendedores, que lidam com muitas incertezas e riscos. O problema é quando tudo isso começa a corroer a saúde mental. “Perder noites de sono, não conseguir tirar nem um dia para o descanso é preocupante, porque são sintomas de burnout”, explica Cruz.
Brigas constantes com os sócios e um afastamento da família e dos amigos também são sinais de alerta. Rodrigues contextualiza: “Se as preocupações começarem a comprometer os seus relacionamentos, é hora de refletir. Você precisa saber quais são suas verdades intocáveis, o que você mais preza na vida e do que não quer abrir mão. E, com base nisso, tomar suas decisões”.
A desmotivação é outro fator importante. E o consultor dá um conselho: “Quando você não tem mais vontade de acordar, pegar um café e começar a resolver problemas, é preciso pensar se vale mesmo a pena continuar”.
Números no vermelho, em geral, indicam que algo não vai bem. “O primeiro sinal é financeiro: queda de vendas não ligada à sazonalidade. Daí cai a lucratividade e começa um ciclo de não ter recursos para pagar contas, o que leva ao endividamento”, afirma a consultora do Sebrae-SP.
Pode ser também que o produto ou o serviço não seja lucrativo o suficiente. Ou que não tenha se adequado ao mercado – como quando uma startup não atinge seu product market fit (desempenho do produto dentro de um determinado mercado) e os empreendedores desistem do projeto. Ou a ideia pode ser inovadora demais para aquele momento.
O relacionamento com os sócios também dá um alerta, especialmente quando nem todos têm o mesmo engajamento e compromisso, diz a psicóloga da PUC-SP. “Se uma pessoa quer ganhar dinheiro rápido e a outra quer um negócio mais estruturado, talvez seja melhor procurar outra sociedade.”
Alguns desses problemas podem ser resolvidos. Outros não. Se algo não está funcionando já há algum tempo, é preciso olhar para outros caminhos, orienta Rodrigues. “O que te fez chegar até ali não é o que vai te fazer dar o próximo passo. Pode ser preciso abandonar o produto, o modelo de negócio, a forma como você vende.”
Quem está investindo suas reservas financeiras no negócio precisa ponderar até quando pode levar prejuízo. “Trace uma linha: qual é o nível de endividamento suportável para você? Aquele que não compromete, por exemplo, os bens familiares? Se você investiu todas as economias na empresa, é muito arriscado acumular dívidas”, diz Cruz.
Quando não é mais possível continuar, os empreendedores podem fazer um plano de contingência da desistência, afirma a psicóloga: “É possível desistir de forma planejada. Isso minimiza o potencial de risco e de perdas”.
Decisão tomada, é hora de contar para os outros o que vai acontecer. Primeiro, para quem investiu com você: a família e os sócios. “Não se isole. Não esconda o que está acontecendo da sua família e de quem é mais próximo”, sugere a coordenadora da FIA.
Depois é a vez de contar para todas as pessoas impactadas pelo projeto ou pelo negócio, como funcionários, fornecedores e clientes.
Essa comunicação pode ser bem objetiva e assertiva, diz Limongi-França: “É simplesmente dizer que não deu certo, sem muitos detalhes, porque é emocionalmente difícil. Coloque-se no papel de um decisor que está comunicando um resultado”.
Mesmo que a decisão seja a de encerrar o negócio, anunciar isso claramente com quem trabalha com você é uma maneira de deixar as portas abertas para o futuro. “Fechar de forma idônea e ética é importante para não criar uma cadeia de problemas”, completa a consultora do Sebrae-SP.
A primeira onda de emoções que vem depois da desistência traz sentimentos de frustração, fracasso, vergonha e culpa. “É natural se perguntar o que poderia ter feito diferente, melhor. Mas depois vem um alívio”, diz Rodrigues.
Nesse momento, segundo a psicóloga da PUC-SP, é necessário se recolher um pouco para viver o luto, a perda. “É importante se dar esse tempo para ressignificar essa experiência negativa e entender qual foi o seu aprendizado.”
As marcas emocionais dessa experiência são profundas e não podem ser subestimadas, avalia Limongi-França. “Muitos traumas não vão passar sozinhos, será preciso buscar ajuda. Afinal, o empreendedor vai ter que recomeçar carregando essas marcas.”
Ter uma rede de apoio é essencial, completa a professora. “Aproxime-se dos amigos e profissionais que tenham a ver com seus valores, porque essa é a rede de proteção na hora do tombo.”
Depois que passa o baque inicial, a desistência sinaliza uma oportunidade de recomeçar. “Você não está desistindo da sua vida, ainda tem muito a renovar, reinventar, reaprender com essa experiência”, diz a coordenadora da FIA.
Para Cruz, uma maneira saudável de lidar com a desistência é não se deixar desmobilizar. “Desistir não significa que você não pode fazer nada. Muitas vezes, precisamos exatamente evitar atalhos para chegar ao nosso objetivo. Percorrer caminhos sinuosos, mas que trazem mais solidez.”